quarta-feira, 18 de julho de 2012

VILA REAL - Comunicação proferida na noite de Memórias de Céu e Inferno na Biblioteca Municipal / Dr. A. Passos Coelho / Fronteira do Caos

Director da editora, Dr. António Passos Coelho (em pé), Presidente da Cãmara Municipal,
 Armando Palavras, Pires Cabral



Foi para nós um privilégio e uma grande
 honra, termos apresentado o livro Memórias
 de Céu e Inferno do Dr. António Passos
 Coelho (um escritor de Trás-os-Montes,
 mas de escrita universal), no passado
 dia 13 de Julho, na Biblioteca Municipal
 de Vila Real, ladeado por outro
 escritor de igual envergadura: A.M. Pires Cabral 
(com obra literária mais extensa e traduzida em várias linguas).
 Na companhia do próprio autor, do Presidente da Câmara Municipal,
 Dr. Manuel Martinho e do Director da editora Fronteira do Caos.
Vila Real deve sentir-se honrada e orgulhosa por ter um filho 
com a pujança de escrita de António Passos Coelho.
 E esta está bem patente na argumentação da comunicação
 que se segue:


Armando Palavras
Memórias de Céu e Inferno
Esta história passa-se no tempo em que foi 
inventada a esferográfica

Comunicação proferida na Biblioteca Municipal,
 por iniciativa do Grémio Literário, em Vila Real,
 a 13 de Julho, às 21H



Muito Boa noite

Quando Jorge Luís Borges, referindo-se a A Morte de Ivan Illitch (Tolstoi), 
como uma das histórias mais admiráveis da Literatura, e termina dizendo 
que nela “marcam encontro o conhecimento do homem e a perfeição literária”, 
ocorre-nos ao espírito, formular o mesmo juízo para a obra de 
António Passos Coelho.
Ou então, contemplando o inicio destas “memórias”
 (os primeiros quatro capítulos), diremos como à época o jovem 
Cesare Pavese, no seu diário a 13 de Outubro de 1936, 
dizia sobre o início deFerragus ou sobre o início da segunda 
parte de Splendeurs et misères dês courtisanes, de Balzac:
 “É sublime. É Baudelaire que se anuncia”.
Sobre o estilo (quanto ao léxico e sintaxe) não poderemos dizer
 de António Passos Coelho, o mesmo que Marcel Proust 
nas suas Observações sobre o Estilo
disse de Stendhal. Em Passos Coelho, o vocabulário e a gramática
 soam como notas musicais.
Mesmo o calão utilizado, principalmente nos diálogos cujo assunto
 passa pelo feminino é oportuno, fazendo sorrir o leitor.
As descrições dos personagens, sempre expostos de forma graciosa, 
são breves e originais, tratadas de relance,
 após uma breve apresentação das mesmas, 
no início dos capítulos.
A escrita melancólica do autor que entristece o leitor, criando-lhe até alguma 
angústia e vazio quando faz o retrato real da pobreza, da doença, do abandono,
 do desprezo, e outros infortúnios dos seus personagens, torna-se viva, cheia de força,
 à semelhança da de Mark Twain, em Huckleberry Finn, quando impregnada 
do cómico, como nas reflexões do pequeno 
Silvestre sobre os Santos de Chaves (p.87), as diabetes do sr. Augusto (p.99), 
ou como nos diálogos a sós com Celso, 
nos diálogos com as meninas no “Catequero”, ou nos diálogos com Céu,
 em momentos de reconforto.
E esta vivacidade é fruto da sua natureza.
 Vasco Pulido Valente, em entrevista recente, 
dizia que os romances se escrevem até aos 40 anos. 
A António Passos Coelho acrescentam-se outros tantos (46)
 e parece Arthur Rimbaud com 16 quando escreveu aquela obra-prima:
 Iluminações.

Como os grandes escritores, o autor destas “memórias” tem uma escrita
 límpida e é um conhecedor da natureza da alma humana.
Auscultou de perto, como homem e como médico, a pobreza humana tão
 bem tratada em toda a sua obra, num realismo desconcertante como 
só os grandes o fizeram[1] – Leonid Andréev (Lázaro), 
Emílio Zola (Germinal), John Steinbeck (As Vinhas da Ira),
 ou Torga nos seus contos (conto de Natal), por exemplo.
Os anos vividos na Peneda, essa pequena povoação do Douro, 
situada entre o Marão e o Alvão, são tempos de uma pobreza brutal. 
A promiscuidade de Germinal está implícita na descrição das divisões 
da casa da Peneda: três, separadas por cortinas.
A vida miserável que padeciam, 
pois não raras vezes se alimentavam
 apenas de caldo, sem tempero, 
era fruto de tanta miséria que andavam 
descalços no Inverno e a roupa era 
remendo sobre remendo.
 O protagonista desta história
 chegou a andar coirapato durante 
o dia para a tia lavar, 
corar e secar a sua única roupa.
E Silvestre, já casado com Céu,
 numa visita que faz aos tios, 
à quinta do Minho onde eram caseiros, lembra-se dela nos rigorosos invernos 
com as “socas gastas”, os “peitos desnutridos”, a “amassar o pão das duas broas”,
 a maior destinada para a semanada de trabalho do tio e a outra, a mais pequena, 
para as restantes sete bocas.
Momento tão espectacular como aquele lembrado por Primo Levi 
n’O Sistema Periódico. Em Auschwitz, no laboratório onde o haviam posto
 a trabalhar, conheceu um homem “ desastrado e não muito esperto, 
que não era nazi”. Ajudou-o com coisas tão simples como arranjar sapatos.
 Diz-nos Levy numa das suas entrevistas:
 “Isto era uma vantagem porque as tamancas de madeira eram uma tortura. 
Ainda tenho cicatrizes”.
António Passos Coelho é duro quando trata de temas pertinentes como o aborto (Zélia), 
tornando-se moderado quando critica o regime predominante no tempo da acção.
 Moderado, mas incisivo. A leveza do sr. Xando quando critica o sistema, 
ou quando o faz o Amigo Celso, é uma crítica sábia tão ao modo da famosa 
afirmação de Lessing, como nos lembra Anaah Arendt: preferia “deixar
 em paz aqueles em quem toda a gente bate”. Mas como Jürgen Habermas,
 não deixa de dar a sua contribuição para uma opinião pública critica. 
O leitor é chamado à reflexão.
O autor destas “memórias”, à semelhança de Kierkegard, Dostoiévski ou Nietzche, 
também considera “interessantes” as questões religiosas e teológicas, 
pois embora fugazes, estão sempre presentes na sua obra.
 Como são evidentes nas reflexões do sr. Xando ou da D. Guida.
Se moralmente a conduta de Silvestre e Céu nos não pareça a mais adequada,
 está impregnada de modernidade e, o autor, como Baudelaire
 não é arrastado pelo pessimismo, pelo desencanto.
É uma conduta própria da natureza humana.
 A química existente entre contrários é hoje objecto de estudo por parte
 da Ciência. Céu tem amor à vida (apaixonando-se perdidamente por Silvestre)
 e como nos diz Albert Camus n’OAvesso e o Direito, “ Não há amor à vida 
sem desespero de viver”. Os anos que viveram esse amor, antes e 
depois do suicídio do sr. Augusto, são anos de intensa alegria, 
de intenso amor e desejo. Apenas quebrados pela doença de Céu.
Contudo, o comportamento dos protagonistas é de preocupação 
constante em não molestarem terceiros. Existe uma filosofia 
de valores. Os encontros, as cartas, assim o demonstram. 
Quando Céu engravida, a preocupação de Silvestre é grande
 porque o sr. Augusto “não merece o vexame”.
À semelhança de Hermann Broch, existe em A.Passos Coelho 
um padrão ético[2]. Segundo Broch, o “valor” inerente à vocação
 do homem de negócios, o valor pelo qual tudo deve medir-se
 e que deveria ser também o único objectivo da 
actividade comercial, é a honestidade. Ou, pelo menos, 
como oCrusoe de Defoe, onde o homem de negócios é respeitoso das normas.
No autor destas “memórias” esse padrão está presente em todas
 as páginas. Absolutamente contrário à expressão de “negócios são negócios”
 que contém em si mesma a desonestidade do especulador sem escrúpulos, 
do usurário. Repare-se nos conselhos dados pelo sr. Augusto a Silvestre 
no Cap. 11. Ao transmitir-lhe os cinco mandamentos do bom empregado
 frisa que este deve ser honesto, tanto para a firma que lhe paga,
 como para os fregueses que nela se abastecem. E acrescenta: 
“Quero fazer de ti um homem de bem” (p. 91).
 E destina-lhe um trabalho próprio para a idade,
 estabelecendo-lhe um ordenado (p. 81).
O próprio Silvestre, já sócio gerente da loja, 
cumpre com o prometido ao falecido Augusto, 
estabelecendo uma reforma condigna ao Guilherme.
O escritor que também é médico, não deixou de 
abordar pormenores da profissão como o sonho. 
Os sonhos de Céu, foram aqui tratados como
 foram interpretados, descritos e comentados por Jerónimo Cardano[3]
também ele médico famoso, no De consolatione[4]
o famoso livro que muitos especialistas de William Shakespeare, 
acreditam ser o que Hamelet está a ler quando entra em 
cena no segundo acto juntamente com Polónio.
 Onde se diz (em Cardano):
 “ É claro que o sono mais doce é o mais profundo, quando estamos 
como mortos e não sonhamos nada, enquanto é de grande incómodo
 o sono leve, inquieto, interrompido por vigílias, visitado por 
pesadelos e visões, como costuma acontecer aos doentes”. 
Ora era o que acontecia a Céu.
 Tinha insónias, e a doença já se fazia sentir.
Da mesma forma que nos diz Umberto Eco acerca de Borges, diremos nós de António Passos Coelho: conclui depressa dizendo tudo. Estaremos assim perante o conceito de brevidade ou de rapidez da escrita, lançados por Ítalo Calvino em Seis Propostas para o Próximo Milénio. Característica dos grandes narradores, lê-se em Walter Benjamin.
Na narrativa Reencontro inesperado
que faz parte da obra Cofrezinho do Nosso Amigo Renano
a dado passo, o incomparável Johann Peter Hebel, viu-se na necessidade 
de tornar evidente que tinha passado uma série de anos.
 Enumerou sucintamente vários factos históricos, iniciando-os com 
o terramoto de Lisboa e acabando com Napoleão 
a conquistar a Prússia e os ingleses a bombardearem Copenhaga. 
Repare-se como António Passos Coelho no 25º capítulo
 nos dá conta como “decorreram vertiginosamente os anos”. 
Inicia com a desistência da candidatura do general Norton de Matos 
(Fev. 1949), para concluir com o início da luta armada nas colónias
 portuguesas em 1960-61.
Ora como nos lembra Walter Benjamin, o mais importante critico
 literário alemão do período entre guerras (diz-nos Hannah Arendet), 
esta forma breve de escrita, e a tendência para assuntos de
 interesse prático, como característica de muitos narradores natos,
 “tem a ver com a verdadeira essência da narrativa”[5].
Na verdade, António Passos Coelho, seguindo o pensamento 
de Benjamin, é um dos últimos narradores. Porque acumulou experiência, 
e é ela a fonte onde todos os narradores vão beber.
Lesskov, que na opinião de Tolstoi era um dos maiores narradores russos, 
viajou por toda a Rússia como representante de uma firma inglesa.
 Teve assim oportunidade para desenvolver nas suas narrativas temas
 diversos. Com António Passos Coelho, aconteceu o mesmo. 
Ao longo da sua já extensa vida, viajou por dentro e por fora do país.
A narrativa, contém em si, oculta ou abertamente, uma dimensão 
utilitária, que pode consistir num ensinamento moral, outras vezes
 numa instrução prática, e ainda nalguns casos num ditado ou 
norma de vida. O narrador é sempre alguém que sabe dar conselhos, 
utilizando a sua narrativa com objectivos didácticos, como Brecht fez 
com as suas peças de teatro, diz-nos Benjamin, para quem, 
o fundamental da narrativa, a sabedoria, estava a morrer. 
Nestas “memórias” confrontamo-nos com tudo isto. 
A titulo de exemplo, refiram-se os conselhos que o 
sr. Augusto , ou o sr Xando (p.71), transmitem a Silvestre.
Mas além de grande narrador, o autor destas “memórias é também
 o romancista; do indivíduo na sua solidão.
Enquanto que no conto o leitor está na companhia do narrador,
 o leitor do romance está só. Perspectiva que, como sabemos,
 foi transformada por Diderot, com lugar entre os pais da literatura 
contemporânea, quando no seu anti-romance[6] pretendeu que 
o leitor passasse a participar na história narrada, vivendo-a[7]
Em António Passos Coelho, narrador e romancista confundem-se.
 Quando pára um, começa o outro e vice-versa.
Porém, a obra de António Passos Coelho é grande, 
sobretudo porque estão aqui reunidos os pilares tradicionais da 
cultura europeia: a cultura Judaico-Cristã e a Greco-Romana.
No lugar do guerreiro nobre, a cultura judaico-cristã colocou a
 mansidão do cordeiro que enfraqueceu a compreensão homérica da excelência,
 como notaremos adiante. E, de facto, em Silvestre nota-se essa mansidão, 
essa humildade cristã. A bondade de Silvestre (que também é fruto do seu
 sofrimento atroz ao longo da vida) demonstrada em inumeráveis momentos 
da obra, só é comparável à de Jacinto d’A Cidade e as Serras de Eça[8]
ou à de Waldemar Gurian, aquela enciclopédia ambulante que 
Hannah Arendet nos deu a conhecer. Gurian que só se 
”sentia atraído pela inteligência e pela criatividade espiritual”, 
esquecia-se desses critérios habituais quando tinha que se desviar
 para ir ao encontro das vitimas da injustiça, dos deserdados, 
dos oprimidos, daqueles que a vida ou os homens tinham maltratado.
E a sua compaixão demonstrada em momentos como o da prostituta do Porto,
 ou como quando reza uma oração sempre que vai à missa a Cesarinho,
 é apenas comparável com a de Bertrolt Brecht, quando se revoltou 
ao lado de todos os famintos: “Dizem-me: 
Come e bebe! Alegra-te, já que o tens! / Mas como posso eu comer e beber,
 quando/Tiro ao faminto o que como, e/ 
O meu copo de água falta ao que morre de sede?”[9].
Contudo, além da bondade cristã, é aqui bem visível o estoicismo 
romano quando é “atropelado” pelas adversidades, quando resiste
 com lealdade às vicissitudes da vida: a perda da mãe, a perda da 
sua primeira família (dos tios e primos) por necessidades económicas, 
a perda da sua segunda família (a de Lamego) por capricho da irmã de Xando,
 ou a perda de Céu.
Todavia, é uma obra maior porque nela está implícita a tradição grega.
Como os gregos do tempo de Homero ou de Arquíloco[10], a sua obra 
recusa o mundo desencantado no qual hoje vivemos. 
E abraça o mundo encantado de Homero, pleno, como estava, 
de gratidão e espanto[11].
Na verdade, os fenómenos de gratidão e admiração constituem o
 pano de fundo de todo o modo de compreender a existência 
humana de Homero. É isto, para Homero, o paradigma da excelência.
 E este paradigma está presente em toda a obra do autor destas “memórias”, 
quando a dado passo, Silvestre se espanta com a sedução de D. Céu, 
ou com a proposta do sr. Augusto de o convidar para sócio gerente da 
Casa Nóvoas. Mas sempre grato a quem o ajudou. Aos tios, ao sr. Xando
 e D. Guida, a Céu, ao sr. Augusto. Este sentimento está sempre presente
 nas suas reflexões. Que materializa, por exemplo, quando oferece 
o cordão de ouro à tia e à prima Graça e, mais tarde, 
a carteira de pele com duas notas, ao tio.
E se Ésquilo transmitiu nas suas peças, intensa alegria[12]
o mesmo se pode dizer da obra de António Passos Coelho[13]
na qual, tal como na de Sófocles, se encontram momentos de
 escrita sublime! Onde a harmonia musical da palavra se confunde 
com a elegância de uma fórmula matemática bela.
A grandeza que nos transmitem os grandes trágicos 
é de que (para além dos nossos desejos), as coisas são
 como são. A beleza de Guerra e Paz é que a agonia do príncipe André 
se conclui com a morte, por mais que isso nos custe, diz-nos Umberto Eco. 
Com Céu sucedeu o mesmo.
Ao contrário de Stendhal, que descreve a batalha de Waterloo, 
em Cartuxa de Parma, com os olhos de Fabrício (Del Dongo),
 que está dentro dela e não compreende o que se está a passar, 
Victor Hugo, n’Os Miseráveis, descreve-a com os olhos de Deus. 
Vê-a do alto. Se Napoleão tivesse sabido que para lá da ponta 
do planalto de Mont-Saint-Jean havia um precipício 
– o seu guia nada lhe dissera –, os couraceiros de Milhaud não se teriam abatido
 aos pés do exército inglês. E se o pequeno pastor que fazia de guia 
a Bülow tivesse sugerido um percurso diferente, as tropas prussianas 
não teriam chegado a tempo de decidir a sorte da batalha.
´´É isto que nos dizem todas as grandes histórias, quando muito
 substituindo Deus pelo destino, ou pelas leis inexoráveis da vida”
 – continua Eco[14].
É, pois, isto que nos dizem estas “memórias”; 
o seu autor apenas substituiu Deus pelo destino, 
e do alto observamos o pequeno Silvestre a ser enredado 
pelo destino a que não foge; aceita-o com bondade e segue 
o caminho sem se desviar. Sem revolta. Aceita os tios e os primos, 
a família de Lamego, a de Chaves[15], o amor e a morte de Céu.
Imaginemos que o pequeno Silvestre concretizava a ideia que lhe 
viera à cabeça, em Lamego: fugir para junto dos tios.
 Ou se aceitasse a proposta da senhora da Quinta da Formiga de
 Tabuaço, D. Laurinda, com quem estabelece diálogo na viagem para Chaves.
Fintava o destino, mas a história seria outra.

Muito obrigado

Armando Palavras


(Com a devida vénia)

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